terça-feira, 26 de abril de 2011

Carta a um diplomata finlandês

Caro Steinbroken

Por estes dias, recordo as noitadas em que nos cruzávamos nos salões dos Maias, no Ramalhete, às Janelas Verdes, nas tertúlias que o José Maria retratou no livro a que deu o nome daquela família.

Lembro-me da generosidade com que você, diplomata finlandês, era recebido naquele cenáculo, onde, com carinho lusitano mas cosmopolita, entre mesas de whist ou numa ronda de bilhar, ou ouvindo-o a si como "barítono plenipotenciário", procurávamos atenuar a sua nórdica solidão.

Muita água passou sob as pontes. Você regressou aos gelos da sua Finlândia, eu por aqui fiquei, com a escassa fortuna que Celorico me deixou.

Há uns anos, caro Steinbroken, você escreveu-me para Lisboa, dizendo do agrado com que vira Portugal apoiar, com entusiasmo, a entrada do seu país na União Europeia. Elogiou o facto de, ao contrário de outros, não termos achado que a "finlandização" havia sido um imperdoável pecado histórico de agnosticismo estratégico, um genérico triste da "realpolitik". E recordar-se-á de eu lhe ter respondido, na volta do correio, que, conhecendo-o a si, nunca o tivera por seguidor do "better red than dead".

Noutra ocasião, você veio bater-me epistolarmente à porta, pedindo que deixasse cair uma palavra nas Necessidades, com vista a evitar que Portugal cedesse a um compreensível egoísmo, por mor dos fundos estruturais, a ponto de poder criar obstáculos aos Estados bálticos, “primos” da Escandinávia, que queriam então aceder à NATO e à União Europeia. A resposta da nossa diplomacia foi, reconheça, soberba: embora o alargamento fosse um passo que tinha em Portugal um dos países mais prejudicados, adoptávamos uma visão solidária da Europa, pelo que entendíamos que um mínimo de respeito histórico nos obrigava a acolher aqueles Estados no nosso seio. Da caixa de vodka que você me mandou, com um cartão catita, a agradecer a diligência, ainda me resta uma botelha.

Pensava partilhá-la consigo, Steinbroken, numa sua próxima vinda a Portugal, à cata de sol e de olho nos corpos morenos, Chiado abaixo. Passaríamos pelo Grémio, jantaríamos no Tavares e iríamos degustar o resto dos álcoois no meu terraço, Tejo à vista. Eu contar-lhe-ia a poética aventura eleitoral do Alencar, a carreira como banqueiro da besta do Dâmaso, o folhetim da venda da “Corneta do Diabo” à Prisa, a colaboração do Cruges com os “Deolinda”, a agitação do Gouvarinho e de outros tantos, nas lides que levam às Cortes.

Mas, agora, o que me chega? Que você foi ouvido, num dos últimos dias, passeando sob as árvores onde o verde já brota, ali na Promenade, no centro de Helsínquia, recém-saído do spa do vizinho Kämp, de braço dado com um alemão, com tiradas muito pouco simpáticas sobre Portugal e os portugueses. E que dizia você? Que, afinal, o compromisso político que a Finlândia havia dado à estabilidade do euro, que servira para a Grécia e para a Irlanda, poderia já não valer para Portugal. Ao seu lado, o alemão ecoava coisas parecidas, quiçá esquecido que o meu país, como todos os outros parceiros europeus, andou anos a pagar elevadas taxas de juro, para liquidar a fatura da reunificação da Alemanha, que hoje é, como sempre foi, o grande beneficiário do mercado interno europeu.

É triste, caro Steinbroken, é muito triste que a frieza do vosso egoísmo lhes faça esquecer que a solidariedade é uma estrada de dois sentidos. Aqui, por Portugal, estamos a atravessar uma conjuntura difícil. Outras já tivemos, todas ultrapassámos. Mais recentemente, cometemos alguns erros, revelámos fragilidades que a crise sublinhou. Pensávamos poder contar com os amigos. Ao longo dos tempos, aprendemos a ser gratos a quem nos ajuda, a ser-lhes leais quando de nós necessitam. Não somos rancorosos, porque alimentar ressentimentos mesquinhos não está na nossa maneira de ser. E sabe porquê? Porque, na vida internacional, mantemos alguns sólidos valores, os mesmos que nos permitiram sobreviver nove séculos como país, um dos mais antigos do mundo, sabia?

A vossa atitude, a vossa quebra de solidariedade, porque revela o conceito instrumental que têm da Europa, para utilizar uma frase que você repetia, entre outras platitudes árticas, pelas noites do Ramalhete, “c’est très grave, c'est excessivement grave…”.

Receba um abraço, ainda amigo, orgulhosamente (quase) mediterrânico do

João da Ega
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Sobre o mesmo assunto leia também uma carta publicada há pouco tempo no DN intitulada " Em tempos foi Portugal a ajudar a Finlândia " que passo a citar:

“O DN publicou a 21 de Abril de 1940 um "bem haja" da Finlândia aos portugueses. Enviada pelo representante em Lisboa desse país nórdico, a nota diplomática agradece a Portugal a ajuda, tanto em víveres como em agasalhos, durante a guerra russo-finlandesa do Inverno de 1940-1941. "Nunca poderá o povo finlandês esquecer a nobreza de tal atitude", podia ler-se no pequeno texto publicado no nosso jornal há mais de 70 anos.

A solidariedade com a Finlândia pode explicar-se pela aversão no Estado Novo a tudo o que fosse comunista, e era a União Soviética que estava a atacar o seu vizinho, e também pela simpatia natural do pequeno Portugal por outra pequena nação, sobretudo numa época em que as grandes potências mostravam toda a sua gula conquistadora. Mas o heroísmo dos finlandeses, que evitaram que Estaline os integrasse na União Soviética quando pouco antes se tinham libertado do império czarista, emocionou a sério muitos portugueses bem-intencionados.

Hoje boa parte da opinião pública finlandesa mostra não estar nada emocionada com a crise que afecta os portugueses. E se depender de vários partidos, alguns dos quais podem chegar ao Governo nas legislativas de hoje, não haverá solidariedade com Portugal. A ideia é mesmo não participar no resgate da dívida portuguesa e quem o defende parece ganhar votos.

Portugal entrou na União Europeia em 1986, a Finlândia em 1995. Periféricos ambos, optaram por aderir ao euro, sendo os finlandeses os únicos nórdicos a fazê-lo. Tudo parecia indicar um partilhado entusiasmo pelo ideal europeísta. Hoje, nas urnas, veremos se assim é. E bem haja aos eleitores finlandeses que percebam que todos, mas sobretudo os pequenos, ficam a ganhar quando existe solidariedade entre os países da velha Europa.”

Certos países têm a memória muito curta, mas a História acaba sempre por se repetir…

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